Helena Roseta
facebook
Investigação do jornalista Paulo Pena
Novo Banco vendeu 13 mil imóveis a fundo anónimo, deu crédito e recebeu compensação estatal pelas perdas
28-07-2020 Paulo Pena, Público
Ilustração de Vasco Gargalo para o Público
Ilustração de Vasco Gargalo para o Público

Foi o maior negócio imobiliário em Portugal nos últimos anos. Foi uma “pechincha”. O Fundo de Resolução cobriu as perdas de centenas de milhões. O Novo Banco vendeu e emprestou o dinheiro a quem comprou. Quem? Não se sabe. Ninguém escrutinou os compradores.

No dia 8 de Novembro de 2017, uma quarta-feira, António João Barata da Silva Barão, engenheiro de formação e pintor, que fundou e dirige a tertúlia artística Parlatório, em Lisboa, e a sua companheira, Ana Paula da Costa Lapa, registaram cinco sociedades imobiliárias de uma só vez. Todas com a mesma morada onde já tinham muitas outras, na loja 19 do Shopping Columbia, na Avenida Júlio Dinis, n.º 14, perto do Campo Pequeno, em Lisboa.

Cada um ficou com 50% das quotas das imobiliárias, mas António ficou como gerente de todas. Não que isso lhe viesse a ocupar muito tempo. Apesar do boom nos preços do imobiliário em Lisboa, daquelas cinco sociedades que criaram só uma registou uma venda, no valor de 200 euros. As outras acabaram o ano a zero.

Cinco dias antes deste registo em Lisboa, nas distantes ilhas Caimão, mais concretamente no Cayman Corporate Centre, número 27 da Hospital Road, em George Town, foi criado um hedge fund, um fundo de investimento muito mais arriscado do que os tradicionais. Chama-se Anchorage Illiquid Opportunities Master VI (A) LP. Os valores que ostenta na data da sua criação são muito diferentes dos cinco mil euros de capital social das empresas criadas no Shopping Columbia em Lisboa. Mil duzentos e cinquenta milhões de dólares é o valor do fundo, repartido por mais de 18 investidores anónimos, tal como vem descrito na documentação entregue à Securities and Exchange Commission dos EUA.

ara reforçar o anonimato e para pagar ainda menos impostos do que nas Caimão (um dos mais conhecidos “paraísos fiscais” do mundo), o hedge fund atravessou o Atlântico e registou, no dia 11 de Dezembro, no Luxemburgo, uma sociedade de responsabilidade limitada, chamada AIO VI S.a r.l., com sede na Avenue J.F. Kennedy, 43.

Para completar esta história, que parece não ter qualquer tipo coerência, o fundo das Caimão ordenou à sua filial do Luxemburgo, no dia 8 de Outubro de 2018, que comprasse as cinco sociedades imobiliárias lisboetas a António Barão e Ana Paula Lapa.

Dois dias depois desse negócio, fechou-se o círculo destas entidades, menos de um ano depois de terem sido criadas. A venda, pelo Novo Banco, anunciada no dia 10 de Outubro de 2018 à CMVM, de 5552 imóveis e 8719 fracções às sociedades lisboetas, detidas pela sociedade luxemburguesa, que, por sua vez, pertence ao fundo de investidores anónimos nas ilhas Caimão.

Uma “pechincha”


Este foi o maior negócio imobiliário realizado em Portugal nos últimos anos, e o segundo maior da Península Ibérica. Teve até um nome de código, atribuído pelo Novo Banco: Portfólio Viriato. Foi, também, um negócio sui generis. As casas e os terrenos — cerca de metade das quais habitações residenciais — foram vendidos muito abaixo do preço por que estavam avaliados. Valeriam, nas contas do banco, 631 milhões de euros. Foram vendidas por 364 milhões.

“Uma pechincha”, criticou a deputada Helena Roseta, no seu último discurso no Parlamento, no dia 13 de Março de 2019. Aí, a deputada independente do PS (que foi criticada por responsáveis da sua bancada) sugeriu que aquelas casas, àquele preço, podiam servir melhor os propósitos do Estado. “Já que, directa ou indirectamente, somos todos chamados a pagar para manter a confiança dos depositantes e a estabilidade do sistema financeiro, já que a nacionalização do Novo Banco foi descartada, por que não há-de o imobiliário não estratégico do Novo Banco ficar na posse do Estado?”

Esse não é, contudo, o corolário da história. É que o valor das casas causou apenas um prejuízo, contabilístico, no balanço do Novo Banco. O diferencial de preços, entre o seu valor estimado e o valor real da venda, foi colmatado por uma ajuda extra. O Fundo de Resolução, criado em 2012, que auxiliou a resolução do BES, compromete-se a injectar dinheiro sempre que as contas do Novo Banco fiquem ameaçadas. Foi o que aconteceu neste caso concreto. O Novo Banco pediu que o Fundo de Resolução cobrisse parte das perdas que teve no negócio — cerca de 260 milhões de euros.

As hipotecas ainda são do Novo Banco


Mas as contas do Novo Banco tiveram outros impactos, desconhecidos até agora. O sucessor do BES vendeu os imóveis, registou as perdas, recebeu uma compensação por elas, mas ainda emprestou o dinheiro com que o hedge fund das Caimão comprou as suas casas e terrenos.

O fundo comprou milhares de casas em Portugal e Espanha, a um preço baixo, e não arriscou os mais de mil milhões de dólares dos seus investidores porque a compra que fez ao Novo Banco foi garantida por um empréstimo do próprio banco vendedor. Se, por absurdo, o fundo não conseguir vender uma única casa do pacote Viriato, o dono das hipotecas continua a ser o Novo Banco, como pudemos testemunhar no registo predial destes imóveis, em que as casas são dadas como “garantia de contratos financeiros concedidos” às empresas que os compraram.

O risco deste negócio para o fundo das Caimão é próximo do zero. O Novo Banco ainda não deixou de ser dono das casas, uma vez que é credor de uma hipoteca gigante, de centenas de milhões de euros.

Nada disto é ilegal. As regras criadas para a resolução do BES — e a criação de um “banco bom”, suportada pelo Estado e pelo conjunto dos outros bancos, em teoria — exigem que o Novo Banco venda “activos problemáticos”, como o “excesso” de imobiliário, e permitem-lhe anular o risco dos compradores, atribuindo-lhes financiamento a crédito. O Novo Banco explica-nos isso mesmo, nas respostas às nossas perguntas: “A concessão de crédito às entidades compradoras é uma prática internacional de mercado (Vendor Finance) que visa optimizar as condições de venda e financiamento na venda de portfólios de REO (Real Estate Owned), considerando o mesmo o ‘princípio de plena concorrência’.”

Quem investiu no fundo das Caimão?
Nestes negócios, só há uma regra que o Novo Banco não pode infringir, explica o Fundo de Resolução: “O Novo Banco encontra-se impedido, nos termos do contrato, de proceder à venda de activos a entidades relacionadas com a Lone Star.” Nas respostas que enviou ao PÚBLICO, o Fundo de Resolução acrescenta: “Caso se viesse a constatar — o que não sucedeu — que o Novo Banco vendeu activos a entidades relacionadas com a Lone Star, tal configuraria uma violação do contrato.”

É, de facto, difícil de “constatar” que entre os investidores do hedge fund das ilhas Caimão, que comprou os imóveis ao Novo Banco, há pessoas ou entidades relacionadas com a Lone Star, o principal accionista do banco português. Difícil, para não dizer impossível. É que as regras de segredo comercial das Caimão impedem que o Fundo de Resolução, o Banco de Portugal, a SEC dos EUA ou o PÚBLICO saibam, facilmente, e em tempo útil, quem são de facto os verdadeiros compradores neste negócio imobiliário. A identidade dos donos do hedge fund está protegida pelas mais severas regras de anonimato empresarial do mundo.

Ninguém, excepto os gestores do hedge fund, o Anchorage Capital Group, com sede em Nova Iorque, sabe quem comprou as casas portuguesas. Fizemos o que é possível nestas situações: perguntámos ao Anchorage Capital se pode garantir que entre os investidores do hedge fund não há pessoas ou entidades relacionadas com a Lone Star, ou com o Novo Banco. A resposta foi a habitual nestas situações: os gestores não fazem “disclosure” dos titulares do fundo. Não revelam a sua identidade, não aceitam indicar a sua nacionalidade e também se recusam a responder à nossa pergunta mais concreta: “Pode o Anchorage testemunhar que não existem entre os detentores do fundo pessoas relacionadas com a Lone Star ou com o Novo Banco?”

Para fazermos esta pergunta simples, tivemos de tocar a várias portas. O Anchorage Capital não disponibiliza qualquer contacto de endereço electrónico no seu site. Pedimos aos seus representantes legais em Portugal, a sociedade de advogados Morais Leitão e Galvão Teles, que nos respondesse a algumas destas questões. Perante a recusa, solicitámos que o Anchorage nos contactasse para podermos fazer as perguntas. Recebemos rapidamente um telefonema de uma agência de comunicação de Londres, que ficou de satisfazer o nosso pedido. Porém, horas mais tarde, recebemos outro telefonema, de outra agência de comunicação, em Nova Iorque, prontificando-se para o fazer, embora com mais reservas quanto à pertinência jornalística do assunto.

Enviámos as perguntas por email no dia 16 de Julho. Cinco dias depois recebemos um novo telefonema, de um terceiro assessor de comunicação. A resposta final é esta: “O Anchorage recusa-se a comentar.”

Já o Novo Banco aceitou responder. Dá uma garantia: “O banco tem identificado o beneficiário último desta entidade sujeita à US Securities Exchange Commission, e não há qualquer registo ou evidência de transacção com partes relacionadas no âmbito dessa operação de venda de carteira imobiliária.”

O problema é que o “beneficiário último” identificado nos registos da SEC norte-americana é, como vimos, a entidade gestora do fundo, e não os verdadeiros donos. O Anchorage, tal como as outras gestoras de fundos deste tipo, não é a entidade que lucra, ou perde, com os investimentos feitos. Recebe apenas uma comissão pelos seus serviços. Mas quem ganha com a valorização dos milhares de imóveis comprados em Lisboa é o grupo de investidores anónimos. Sobre esses não parece haver qualquer forma de escrutínio.

Como prevenir a violação do contrato?


Por isso, insistimos junto do Banco de Portugal. Perguntámos: de que forma pode o regulador financeiro assegurar-se de que não há partes relacionadas envolvidas neste negócio? A resposta é esta: “Quando os adquirentes dos activos são fundos de investimento ou fundos de private equity, o que se procura apurar é se o fundo em causa é um adquirente credível, nomeadamente tendo em conta as suas credenciais e o seu historial”, começa por explicar o BdP.

“Por outro lado, essas situações — i.e. as situações em que os adquirentes são fundos de investimento ou fundos de private equity — são precisamente aquelas em que a venda normalmente resulta de processos organizados, abertos e competitivos, em que o adquirente é o concorrente que oferece as melhores condições”, continua o regulador.

Por isso, conclui o supervisor, que agora é liderado por Mário Centeno, “esta conjugação de elementos (para além da análise que é feita quanto ao desenrolar dos processos de venda) minimiza a probabilidade de haver aquisição de activos pelo accionista privado do Novo Banco, mas em qualquer caso, se porventura viesse a ser detectado, mesmo após a transacção, que o adquirente de activos abrangidos pelo mecanismo de capitalização contingente era uma parte relacionada com a Lone Star, então nesse caso o Fundo de Resolução poderia invocar que teria havido violação do contrato”.

O que isto significa, na realidade, é que o regulador não fiscaliza, antecipadamente, os problemas legais numa transacção desta dimensão. Confia na boa-fé dos intervenientes.

Os indícios que existem


Mas as perguntas enviadas ao Anchorage eram muito concretas. Durante a apresentação das propostas para a compra dos imóveis do Novo Banco (houve duas propostas vinculativas na fase final, tendo ganho a do Anchorage), um dos vice-presidentes da Lone Star era David Bartlett. Já era um quadro do fundo norte-americano que comprou o Novo Banco, e ficou nessa posição exactamente no ano em que este negócio se fez, entre Dezembro de 2017 e Dezembro de 2018. Em Janeiro de 2019, já com o negócio contratualizado, Bartlett foi contratado pelo Anchorage Capital, onde exerce agora as funções de director.

Não há qualquer prova de que Bartlett tenha trabalhado, em concreto, nesta venda de imóveis. O que a sua mudança de emprego prova, isso sim, é a proximidade real entre estes fundos americanos — Lone Star e Anchorage — que venderam e compraram 13.781 imóveis e fracções ao Novo Banco, em 2018.

Tal como não há qualquer prova de que António Barão tenha criado para o fundo das Caimão as cinco sociedades imobiliárias em Lisboa que realizaram o negócio com o Novo Banco — com nomes pouco habituais para alguém, como Barão, que gosta de repetir a frase de Pessoa, “a minha pátria é a língua portuguesa”, crismadas na conservatória como Great Missouri, Blue Fields, Yellow Nuance, Juticalpa e Bestyellow.

O que há é um precedente próximo. Barão criou uma sociedade imobiliária em Lisboa, a Eusofia, que era detida por uma outra empresa, no Luxemburgo. Até ao dia 2 de Novembro de 2015, António Barão foi o gerente daquela imobiliária, que comprou à câmara um prédio vazio, gigante, no número 57 do Largo do Intendente (que estava reservado para residência de estudantes). Quatro meses depois, a Eusofia passou a ser gerida, como revela um trabalho do jornal O Corvo, por uma figura conhecida no universo BES, o antecessor do Novo Banco: Luís Horta e Costa, ex-administrador da ESCOM.

O método é semelhante, como vimos. Também no caso dos imóveis do Novo Banco, António Barão apenas registou as sociedades imobiliárias, que vendeu pouco tempo depois ao fundo gerido pelo Anchorage. Não sabemos por quanto, nem como se fez essa parte concreta do negócio. Barão não respondeu às perguntas que lhe enviámos por email nem às mensagens que lhe dirigimos nas redes sociais.

Agora, na gerência das imobiliárias criadas por Barão estão representantes de duas empresas contratadas pelo fundo americano: a Lace Investments, portuguesa (fundada precisamente em meados de 2018, quando estava em curso o negócio com o Novo Banco), e a Colba Directorship, espanhola, que também recebeu crédito do Novo Banco para comprar a parte dos imóveis vendidos que estão em Espanha.

E resta a coincidência temporal de ter sido criado um hedge fund nas Caimão, várias imobiliárias em Portugal e um veículo no Luxemburgo, poucos meses antes de ser anunciada a venda das casas pelo Novo Banco. E, que se saiba, nenhuma destas entidades realizou qualquer outro negócio além deste.