Helena Roseta
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Habitação - o que temos e o que falta
Publicado no Negócios
26-12-2018

Temos um mercado distorcido em que falta a confiança, subsistem proprietários com rendas condicionadas, escasseia a oferta face a investimentos mais atractivos e sobra a ansiedade de quem não consegue manter o contrato que tinha. O fenómeno não é exclusivo do nosso país.

1. Chegou finalmente ao fim o processo legislativo do chamado "pacote da habitação", faltando apenas a promulgação pelo PR dos últimos diplomas aprovados. O total de iniciativas apresentadas por todos os partidos ultrapassou as duas dezenas, que acabaram por ser agrupadas em três temas principais - alterações ao regime jurídico do arrendamento urbano, arrendamento acessível e alterações à fiscalidade sobre o arrendamento.

Na sexta-feira passada foram aprovados 5 diplomas, sobre os seguintes temas:

  • combate ao assédio no arrendamento;
  • alteração do NRAU e disposições conexas no Código Civil e no regime de obras em prédios arrendados, reequilibrando direitos e deveres de senhorios e inquilinos, alargando a protecção de idosos e deficientes e actualizando as disposições legais sobre subsídio de renda;
  • autorização legislativa da AR ao governo para isentar de IRS e IRC os sujeitos passivos que coloquem casas no novo programa de arrendamento acessível que será gerido pelo IHRU;
  • criação do observatório da habitação e da reabilitação urbana no IHRU, para fornecer informação sobre a evolução do mercado e das políticas públicas;
  • alteração do Código do IRS, no sentido de aliviar a fiscalidade sobre o arrendamento, de forma progressiva e em função da duração de novos contratos ou da renovações dos existentes, a partir de 2 anos, e do Código do IVA, para permitir que a construção nova para renda acessível pague taxa reduzida.


De caminho, tinham sido aprovadas três leis pelas quais me bati - a lei 31/2018, de 16 de julho, que suspendeu até 31 de março de 2019 os despejos de idosos e deficientes que estivessem há pelo menos 15 ano no locado; a lei 62/2018, de 22 de agosto, que alterou o regime do alojamento local; e a lei 64/2018, de 29 de outubro, que reforçou o direito de preferência dos inquilinos na alienação onerosa de imóveis onde residam.

O sentido geral de todas estas alterações visou criar condições jurídicas e fiscais para promover o acesso a uma habitação compatível com os rendimentos das famílias, sobretudo através do incentivo ao arrendamento. As alterações ao regime do arrendamento urbano tiveram o apoio dos partidos da esquerda, as alterações fiscais foram viabilizadas pelo PSD.

2. O desafio é difícil. O mercado de arrendamento vive ainda assombrado pelo trauma do congelamento de rendas, a que se veio somar em 2012 o trauma oposto da liberalização contratual.

Temos um mercado distorcido em que falta a confiança, subsistem proprietários com rendas condicionadas, escasseia a oferta face a investimentos mais atractivos e sobra a ansiedade de quem não consegue manter o contrato que tinha. O fenómeno não é exclusivo do nosso país. Turismo, juros baixos e incerteza têm desviado os capitais disponíveis para o imobiliário - o "real state" - que se tornou investimento refúgio a uma escala que é global.

Quando a isso se juntam, no caso português, o NRAU de 2012, o aumento explosivo do turismo e do alojamento local nos centros históricos, a falta de habitação pública e a persistência de políticas fiscais mais amigas de outros sectores, o resultado está à vista: há um excesso de alojamentos vazios, uma subida do valor das rendas que ultrapassa em muito o rendimento médio dos portugueses, e nem os jovens, nem quem viu o seu contrato chegar ao fim sem renovação, conseguem arranjar casa.

A pressão sobe perigosamente nas zonas urbanas, enquanto grande parte do país se mantém sem dinamismo e sem procura. É um desequilíbrio estrutural que afecta a coesão social e complica a nossa demografia de país envelhecido.

Entretanto, o Governo está a concretizar a estratégia definida pela Nova Geração de Políticas de Habitação, com programas novos e muito relevantes, como o 1º Direito, o Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado, o Arrendamento Acessível e o Reabilitar como Regra. Falta que os municípios aceitem assumir a parte que lhes cabe na concretização de alguns destes programas.

3. Sabemos, contudo, que o que está feito não chega. Falta uma lei de bases da habitação, que Portugal nunca teve, ao contrário do que aconteceu com o direito à saúde, ao ensino e à segurança social, que há muito dispõem de leis de bases.

Temos na Constituição o artigo 65.º, que estabelece o direito à habitação e as obrigações do Estado para o garantir, mas nunca tivemos uma lei de bases que desenvolvesse os princípios constitucionais e estabelecesse com clareza o papel do Estado, dos municípios, da iniciativa privada e do sector social nas políticas de habitação.

Tivemos ao longo destas décadas programas públicos relevantes dirigidos à habitação social, mas o grosso do esforço do Estado foi consumido em juros bonificados para compra de casa própria.

Falta uma perspectiva global e de longo prazo para combater as desigualdades na habitação - que são regionais, económicas e geracionais. Temos um território diverso e populações com carências distintas e urgentes, incluindo os bairros informais e o interior abandonado.

É numa de bases da habitação, que começará a ser discutida em janeiro na AR, que teremos de fixar uma visão nacional, transformadora e justa, para que o direito à habitação seja, como deve ser, um direito de todos e de cada um, regulado por lei e garantido por políticas públicas consistentes e devidamente financiadas.

Helena Roseta