Helena Roseta
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Artigo no Público on-line
Sair da crise na habitação
22-02-2023
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A crise da habitação é insustentável. A existência de tantas casas e até ruas vazias é escandalosa. Mas só podemos sair da crise exigindo de quem governa o máximo rigor e ponderação.

1. Portugal atravessa uma grave crise de habitação. Há sempre quem beneficie com as crises, por isso não se estranham alguns negacionistas. Mas os factos falam por si. Ao contrário do que acontecia há 50 anos, temos hoje mais casas do que famílias. O último censo contabilizou mais de 5,9 milhões de fogos para 4,1 milhões de agregados domésticos. Do milhão e oitocentos mil fogos a mais, um milhão e cem mil são residências secundárias e setecentos e vinte mil estão vagos. No entanto, milhares de famílias não têm hoje uma habitação condigna.

A habitação enquanto direito está longe de estar garantida a todos. Mas como mercado, que também é, todos os dados confirmam que quem procura casa não consegue pagar a renda pedida e quem está a pagá-la ao banco não sabe como suportar o aumento das prestações.
Chegados aqui, parece inevitável a intervenção do Estado, a quem a Constituição comete a responsabilidade de assegurar o funcionamento eficiente do mercado da habitação, incluindo a repressão dos abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral. A intervenção dos poderes públicos não pode desrespeitar os demais direitos constitucionais, como o direito à propriedade privada e à liberdade de iniciativa económica privada exercida no quadro da Constituição, da lei e do interesse geral. Mas dessa intervenção não pode o Governo demitir-se.

2. Está pendente de aprovação final no Parlamento o Programa Nacional de Habitação (PNH), com os programas e medidas que o Governo pretende implementar até 2026. O PNH prevê mobilizar mais de 2800 milhões de euros, dos quais 2160 do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), e aumentar em 35.000 fogos a habitação pública existente. Além do PNH, o PRR financiará ainda o plano nacional de alojamento para o ensino superior, com 375 milhões de euros, para aumentar em 15.000 camas o alojamento de estudantes deslocados. São verbas elevadas e prazos relativamente curtos para as executar. Mesmo assim, os resultados expectáveis são muito inferiores às carências habitacionais já existentes, que por sua vez tendem a agravar-se enquanto aqueles resultados não se atingem. É uma situação de grande pressão que levou o Governo a apresentar, há dias, o pacote Mais Habitação, com um custo estimado de 900 milhões de euros, para uma resposta mais imediata à disrupção provocada pelo aumento brusco da inflação e das taxas de juro nos últimos meses de 2022.

Nunca a política de habitação dispôs em Portugal de recursos públicos tão elevados. No entanto, os 35.000 novos fogos públicos são menos de 5% dos fogos vagos identificados pelo INE no censo de 2021. Só em Lisboa, havia 47.000 casas vazias, um sexto do total de alojamentos na cidade. Neste contexto, impõe-se mobilizar o máximo de fogos vagos, acelerando o uso de todas as habitações públicas devolutas e incentivando o uso efetivo de habitações devolutas privadas, em especial nas zonas de maior pressão urbanística, como prescreve a lei de bases da habitação.

3. É à luz destes pressupostos, e deixando de lado as múltiplas razões que explicam como foi possível chegar aqui, que comento de forma preliminar o pacote Mais Habitação, um conjunto de propostas distribuídas por cinco eixos e 17 medidas, detalhado apenas em conferência de imprensa e não disponível para consulta pública à data em que escrevo este artigo.

Dos cinco eixos apresentados, os três primeiros visam direta ou indiretamente promover a oferta de mais habitação. São eles “aumentar a oferta de imóveis para habitação”, “simplificar os processos de licenciamento” e “aumentar o número de casas no mercado de arrendamento”. O quarto eixo, “combater a especulação”, pretende pôr termo a situações que distorcem a oferta. Apenas o último eixo, “proteger as famílias”, é direcionado a apoiar a procura de habitação.

Dito isto, só por preconceito ou desconhecimento se pode acusar o pacote de não se dirigir à oferta. E só por radicalismo ideológico se pode colocar o direito à propriedade privada acima de todos os outros, ignorando os deveres constitucionais do Estado, entre os quais o de assegurar o funcionamento eficiente dos mercados.

As 17 medidas incluídas no pacote são de desigual importância, com tempos de aplicação e resultados expectáveis muito diversos. Algumas visam matérias muito sensíveis onde há interesses contraditórios. Todas as relativas a arrendamento ou impostos são de competência reservada do Parlamento. Muita da legislação em vigor terá de ser alterada para implementar outras medidas. Mesmo a subsidiação leva tempo a chegar aos destinatários. Há ainda que definir quem e como vai ser executado o que for legislado. Ou seja, o que foi anunciado precisa de ser desenvolvido com muito mais detalhe. Uma publicação em powerpoint não substitui o acesso aos projetos de diploma necessários, até porque há medidas que já existem, sem que daí tenha vindo mal ao mundo, como o arrendamento forçado, que está no regime jurídico da reabilitação urbana desde 2007; e há outras que já se tentaram e não deram em nada.

4. Temos em Portugal um mau hábito que é preciso combater – anuncia-se muito, legisla-se mal e avalia-se pouco. A informação real sobre os resultados dos vários programas públicos na área da habitação é escassa ou inexistente. Há programas com muito sucesso que foram descontinuados sem se perceber porquê, outros sem qualquer resultado que continuam a figurar. O INE produz, e bem, indicadores trimestrais sobre a evolução dos preços de venda e arrendamento, mas não sobre a sua relação com a evolução dos rendimentos familiares. Num tempo em que a “mineração de dados” e inteligência artificial já comandam uma parte das nossas vidas, podíamos e devíamos ter muito mais informação pública acessível, até para monitorizar os efeitos perversos, que sempre os há, de medidas aparentemente muito justas e equilibradas.

A crise da habitação é insustentável socialmente. A existência de tantas casas e até ruas vazias, em plenos centros urbanos, é escandalosa. Mas só podemos sair da crise exigindo de quem governa o máximo rigor e ponderação, bem como uma maior transparência quanto aos resultados dos dinheiros públicos investidos. Sabemos que o Estado não pode fazer tudo, mas não teremos uma democracia estável se não encontrarmos respostas reais, que custam a construir e levam tempo a dar os seus frutos.

Publicado no Público on-line