Helena Roseta
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Artigo na edição portuguesa do "Le Monde Diplomatique"
A Habitação no Orçamento do Estado: uma gota de água
05-02-2020

Antes mesmo da votação final global, a 6 de Fevereiro, uma análise da proposta de Orçamento do Estado para 2020 apresentada pelo governo de António Costa permite constatar o quanto está por fazer ao nível das políticas públicas para assegurar o direito à habitação.

«O que existe é uma falha grande do Estado, falha de uma comunidade que se chama Portugal», afirmou no Parlamento Pedro Nuno Santos, ministro das Infra-estruturas e da Habitação, na discussão sobre o Orçamento do Estado para 2020. Há nesta frase o reconhecimento de que o Estado português não está a cumprir uma das suas tarefas fundamentais: garantir a todos o direito constitucional à habitação. Cabe então perguntar: onde falhou o Estado? Onde falhou, se falhou, a comunidade? A proposta de Orçamento responde às falhas identificadas?

A falha do Estado é hoje amplamente reconhecida, à esquerda e à direita. As políticas públicas de habitação têm sido inexistentes, insuficientes ou, nalguns casos, contraproducentes.

E que políticas foram essas? Falemos da despesa pública. Entre 1987 e 2011, o Orçamento do Estado suportou a fundo perdido 9,6 mil milhões de euros, numa média anual de 384 milhões de euros, distribuídas do seguinte modo (1): bonificação de juros – 73,3%; realojamento – 14,2%; incentivos ao arrendamento – 8,4%; promoção estatal directa – 2%; e outros fins – 2,1%. Ao longo de décadas, o principal destino dos dinheiros do Estado foi apoiar a aquisição de casa própria. O esforço para realojamento resultou basicamente do Programa Especial de Realojamento, de 1993, para erradicação das barracas. Os incentivos ao arrendamento consubstanciaram-se no apoio ao arrendamento jovem, actualmente Porta 65 Jovem. E a promoção estatal directa teve verbas residuais.

O Estado deixou de promover directamente habitação pública desde 1982, com a extinção do Fundo de Fomento da Habitação, e foi-se desfazendo da habitação pública que havia promovido. Foi assim que chegámos aqui, muito abaixo da média europeia, com apenas 2% de habitação pública face a 98% de habitação privada (2). Destes 2%, que representam perto de 121 mil fogos, só cerca de 11 mil estão na alçada do Estado, geridos pelo Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU). Os restantes 110 mil pertencem sobretudo aos municípios, em quem o Estado vem delegando a sua responsabilidade de promotor de habitação pública.

A falta de fogos públicos é uma das grandes razões da «falha do Estado» apontada por Pedro Nuno Santos. Mas há mais. O Estado regulou o acesso ao arrendamento através do congelamento de rendas e da manutenção de contratos por tempo indeterminado. Assim foi gerindo um controlo artificial dos preços das rendas, com grande impacto em Lisboa e no Porto. O efeito perverso desta política foi a dificuldade de fazer cumprir os deveres de manutenção a senhorios descapitalizados, o que teve como consequência a grande degradação dos centros urbanos. Na segunda metade dos anos 80 as rendas são liberalizadas e, em 2012, a liberalização é total, mudança exigida aliás no Memorando da Troika. Entretanto, deu-se o boom do alojamento local. A quantidade de imóveis a carecer de reabilitação urbana, o aparecimento de plataformas como o airbnb, a facilitação dos despejos e a criação dos chamados «vistos gold» conjugaram-se para atrair capital internacional ao nosso mercado imobiliário, que mudou de escala. A gentrificação e a «turistificação» dos centros históricos são a face mais visível destas mudanças. Em todos estes factores, o Estado, por vezes secundado pelo poder local, teve um papel, no mínimo, facilitador.

Também nas medidas fiscais podemos identificar falhas do Estado, com tributações cegas ao impacto na habitação (caso dos vistos gold, por exemplo, ou do tratamento fiscal muito mais vantajoso para o alojamento local do que para o arrendamento).

É assim que chegamos à outra grande falha que hoje inibe o acesso à habitação: a falha do mercado. Queixam-se os agentes imobiliários de que a culpa é da falta de oferta. Diria que oferta até há, mas não ao preço que os portugueses podem pagar. A procura global tem um poder de compra muito superior ao nosso e sustenta uma oferta de luxo. É certo que o rendimento disponível das famílias em Portugal vem crescendo paulatinamente desde 2015 (3), mas não consegue nem de longe acompanhar o índice de preços da habitação (IPH), com valores superiores a dois dígitos nos últimos dois anos (4). Vale a pena lembrar que um dos indicadores macroeconómicos impostos pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento é precisamente o IPH, que não deveria ultrapassar os 6%. Estamos a vê-lo muito acima disso, trimestre após trimestre, sem que, aparentemente, nem Bruxelas nem nenhuma entidade estatal mostrem preocupação.

Depois da crise de 2008, desencadeada pela bolha imobiliária americana, pensou-se que em Portugal o arrendamento iria finalmente expandir-se, com a queda do crédito. Na realidade, o arrendamento, liberalizado em 2012, rarefez-se, ao contrário do prometido. As alterações legais entretanto aprovadas para repor algum equilíbrio não ajudaram a criar mais confiança. Os incentivos lançados pelo governo do Partido Socialista (PS) são insuficientes. Continuamos a ter uma enorme quantidade de imóveis devolutos, públicos e privados. Quanto menos oferta, mais os preços sobem. Desde 2014, em Portugal, arrendar uma casa sai mais caro, ao fim do mês, do que comprá-la a crédito (5).

Não serão racionais as escolhas que as famílias fazem? Em 1970, segundo o Censo do Instituto Nacional de Estatística (INE), 46% da população portuguesa tinha casa arrendada, 55% casa própria. Em 2011, só 25% tinha casa arrendada e 75% casa própria. Hoje a desproporção poderá ser maior. Será que somos um país de proprietários por vontade própria? É certo que a posse da habitação equivale a maior estabilidade para a família e maior segurança na velhice. É nos países do Sul da Europa que a percentagem de proprietários é mais elevada. Mas metade dos chamados proprietários portugueses está a pagar empréstimos à banca, são na verdade «inquilinos da banca».

Quanta despesa está a ser feita em compra de habitação por quem não tem outra alternativa? E quanto esforço das famílias, das comunidades e do sector da construção está por trás da habitação construída nas últimas décadas? Entre 1970 e 2011, segundo os Censos do INE, o número de alojamentos passou de 2,7 milhões para 5,9 milhões (65% em áreas urbanas e 35% em áreas rurais). Não reconhecer este esforço enorme, em minha opinião, não é justo nem rigoroso.

O que temos de enfrentar são então duas grandes falhas: do Estado, pela ausência, instabilidade ou desacerto das políticas públicas seguidas; do mercado, pelo seu total disfuncionamento, agravado pela pouca transparência e informação e pela rápida e crescente «financeirização» da habitação, isto é, pela transformação do produto imobiliário em produto financeiro, mais fácil e rapidamente transacionável. As casas não atravessam a fronteira, mas mudam cada vez mais de mãos através de esquemas também eles cada vez mais sofisticados e difíceis de fiscalizar.

Os compromissos públicos

Não há dúvida que o anterior governo de António Costa compreendeu que era preciso mudar. Criou a Secretaria de Estado da Habitação, aprovou a «Nova geração de políticas de habitação» (NGPH), legislou. O esquema abaixo (Figura 1) resume os programas criados ou integrados na NGPH, indicando a quem se dirigem.

Figura 1
Fonte: Quadro da autora, com base no esquema incluído na NGPH, anexa à Resolução do Conselho de Ministros 50-A/2018, Diário da República, 1.ª série, n.º 84, 2 de Maio de 2018; os programas assinalados a azul vêm de governos anteriores


As Grandes Opções do Plano 2019-2023 (GOP), que acompanham a proposta de Orçamento do Estado, retomam os compromissos públicos do governo, designadamente reforçar o 1.º Direito, aumentar o parque público, apoiar o interior e reconverter territórios informais. O proposto é consistente com a Lei de Bases da Habitação, nada a objectar.

As Grandes Opções do Plano 2019-2023 (GOP), que acompanham a proposta de Orçamento do Estado, retomam os compromissos públicos do governo, designadamente reforçar o 1.º Direito, aumentar o parque público, apoiar o interior e reconverter territórios informais. O proposto é consistente com a Lei de Bases da Habitação, nada a objectar.

A dificuldade dos números


Mas será que os números do Orçamento do Estado acompanham estas intenções políticas? Quanto se prevê gastar em habitação?

A primeira dificuldade reside no facto de a Proposta de Orçamento do Estado não identificar, na área da habitação, os programas correspondentes. Não se encontram na proposta de lei nem nos mapas que a acompanham as dotações para o 1.º Direito, ou para o parque público de arrendamento acessível, ou para o Porta 65 Jovem. Ficamos apenas a saber que o IHRU poderá gastar até 3,5 milhões de euros do seu saldo transitado no programa Prohabita, para apoios específicos (incêndios na Madeira e realojamento de Vale de Chícharos ou bairro da Jamaica, Seixal) e que receberá até 135 milhões de euros, 85 dos quais por transferência da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças e 50 restantes de um empréstimo do Banco Europeu de Investimento (BEI).

Percorrendo o Relatório do Orçamento do Estado, encontramos uma referência ao 1.º Direito, no quadro «Principais medidas de política orçamental 2019-2020», com 136 milhões de euros para 2020 e sem valor para 2019 (embora o OE 2019 previsse então 40 milhões de euros). A estimativa do IHRU para responder às 26 mil carências identificadas em 2018 era de 1500 milhões de euros, 40% dos quais a financiar a fundo perdido pelo Estado (6). Mas não conseguimos perceber quanto é que o IHRU irá ter para o 1.º Direito em 2020. Nem quanto e quem se irá encarregar do parque público para arrendamento acessível. O governo contará com os municípios, para os quais o IHRU prevê transferir 65 milhões de euros em 2020 e nos quais repousará o essencial da concretização do 1.º Direito. E o resto?

Centremo-nos na medida 030 do OE, que identifica a habitação no agregado «habitação e serviços colectivos». São relevantes as despesas de 244 milhões de euros do Ministério das Finanças, e de 202 milhões de euros do Ministério das Infra-estruturas e da Habitação (mapa XVI). São valores não consolidados, pelo que a despesa total será bastante inferior à soma de 604 milhões de euros. Num documento distribuído em comissão, Pedro Nuno Santos referiu 168 milhões de euros para a medida 030 no seu Ministério. António Costa tem falado em 150 milhões de euros. E o orçamento do IHRU, que é quem executa esta medida, tem um total de despesas de 184 milhões de euros. Em que ficamos?

E para onde vão os tais 244 milhões de euros que o Ministério das Finanças prevê destinar à habitação? 86 milhões de euros (e não 85) vão para o IHRU, 20 milhões de euros para arrendamento urbano (será para o Porta 65 Jovem?), 32 milhões de euros para juros bonificados e, pasme-se, 105 milhões de euros para o Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), do Ministério da Agricultura. Presumo que se trate de um erro (7).

Tudo ponderado, anuladas as transferências entre entidades e eventuais erros, a despesa global para habitação, afecta ao IHRU, no OE 2020 rondará os referidos 184 milhões de euros (8). Mas a despesa efectiva será inferior, uma vez que é preciso abater à despesa global os montantes de activos e passivos financeiros nela incorporados. A análise mais detalhada do orçamento privativo do IHRU, no que respeita à medida 030, consta do quadro seguinte (Quadro 1).

Quadro 1
Despesa global e despesa efectiva do IHRU para habitação(medida 030) - valores em milhares de euros


O montante previsto em 2020 é superior ao dos três anos anteriores. Mas vale a pena comparar previsões com execuções. O gráfico seguinte (Figura 2) ilustra a despesa global em habitação prevista para o IHRU entre 2011 e 2020, e a respectiva execução até 2018.

Figura 2

A média anual de execução de despesas foi da ordem dos 73 milhões de euros entre 2011 e 2018 e de apenas 49 milhões de euros entre 2016 e 2018. Mas a taxa de execução é bem mais alta nos dois últimos anos com contas fechadas. Em média, a taxa de execução do IHRU entre 2011 e 2015, durante os governos do Partido Social Democrata (PSD) e do CDS – Partido Popular, foi de 24,3%, tendo subido entre 2016 e 2018, com o governo do PS, para 40,3%. Uma das razões poderá residir em previsões mais realistas. Mas os montantes executados só excederam os 100 milhões de euros em 2011. Estamos sempre a falar de verbas muito pequenas.


O ínfimo peso da habitação nas funções sociais do Estado


A «Habitação e Serviços Colectivos» é uma das funções sociais do Estado, ao lado da Educação, da Saúde, da Segurança e Acção Sociais e dos Serviços Culturais, Recreativos e Religiosos. Para estas funções, prevê-se em 2020 uma despesa global de 33 mil milhões de euros para os serviços integrados (19% do total) e 36 mil milhões de euros para os serviços e fundos autónomos (61% do total). Cabe constatar que as operações da dívida pública absorvem, só dos serviços integrados, 120 mil milhões de euros (68% do total). O quadro seguinte (Quadro 2) discrimina os valores para as funções sociais.

Quadro 2

Forçoso é concluir que a «habitação e serviços colectivos» continuam a ser o parente pobre do OE, com despesas globais não consolidadas de apenas 1,1% (9) do total global das funções sociais. A realidade é mais drástica. Se isolarmos a habitação do conjunto «habitação e serviços colectivos», que incluem, além da habitação, a administração e regulamentação, o ordenamento do território e a protecção do meio ambiente e conservação da natureza, voltamos aos 184 milhões de euros acima referidos, só para habitação (10). E quanto é que isto representa na despesa total, efectiva, da Administração Central? Este valor, consolidado, é de 72 129 milhões de euros (11). Os 150 milhões de euros de despesa efectiva do IHRU para habitação, que vimos atrás, representam 0,2% da despesa efectiva da Administração Central em 2020 – uma gota de água no oceano da despesa pública (12).

É preciso alargar o quadro da análise, conjugar todas as ferramentas das políticas públicas, incluindo verbas, medidas, disposições legais, definição de responsabilidades. Estas irão em grande parte recair sobre os municípios, já hoje detentores da maioria do parque público e principais destinatários do 1.º Direito. Mas é preciso que o Programa Nacional de Habitação seja formalmente apresentado e debatido para percebermos o que se quer fazer, com quanto podemos contar, que legislação falta. A começar por uma nova lei das rendas, pensada para este século e para os agentes que hoje operam no mercado, com regras claras para todos e alguma estabilidade nos preços, nos impostos e nos deveres e direitos das partes.

Por último: é certo que o Orçamento não esgota as políticas públicas, mas precisamos de orçamentos mais fáceis de entender e de mais informação oficial sobre o mercado da habitação e os rendimentos disponíveis das famílias. O direito à habitação não se cumprirá sem o direito à informação e à participação dos cidadãos e das comunidades. Documentos complexos e bastante ilegíveis, como as Propostas de Lei de Orçamento do Estado, dificilmente nos ajudam. Também aqui precisamos de mudar.

Notas

(1) «Estratégia Nacional de Habitação», anexa à Resolução de Conselho de Ministros 48/2015, Diário da República, 1.ª série, n.º 136, 15 de Julho de 2015.

(2) «OECD Affordable Housing Database», OCDE, 2015, www.oecd.org.

(3) Fonte: PORDATA

(4) Fonte: INE

(5) Idem; os dados referem-se à mediana dos encargos com arrendamento e com aquisição em percentagem do rendimento disponível das famílias.

(6) Fonte: Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional, IHRU, 2018

(7) À data do fecho desta edição não obtive resposta aos esclarecimentos sobre esta questão pedidos à Comissão de Orçamento e Finanças do Parlamento.

(8) A despesa total do IHRU (mapa VII da proposta de lei do Orçamento de Estado) é de 184 278 290 euros; deste montante, segundo o Orçamento privativo deste organismo, disponível no site da Direcção Geral do Orçamento, o total para a medida 030 é de 184 129 139 euros.

(9) Trata-se da percentagem do total não consolidado das despesas em «Habitação e serviços colectivos» (789 milhões de euros) relativamente ao total não consolidado das despesas em funções sociais (69 024 milhões de euros).

(10) Este valor diz respeito apenas ao IHRU, não incorporando os 20 milhões de euros para arrendamento urbano nem os 29,2 milhões de euros para crédito bonificado, previstos no orçamento da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças e não transferidos para o IHRU.

(11) «Elementos informativos anexos ao Relatório do Orçamento do Estado – Quadro 1. Conta Consolidada da Administração Central – Contabilidade Pública».
(12) Veremos se a versão final do Orçamento, com as alterações aprovadas, altera este estado de coisas. Há propostas de reforço substancial de verbas por parte do PCP e BE.