Helena Roseta
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Auto-retrato
04-03-2016

Sempre pensei que as pessoas são feitas de estratos sucessivos e acumulados, como os terrenos. As idades da vida inscrevem-se no corpo, na alma e na pele. E um retrato devia ser um corte vertical, que mostrasse essas diversas camadas nas suas cores, texturas e imbricações. Há-de ver-se que há gente mais homogénea, composta de matéria que se repete e vai engrossando com os anos. Outros são cheios de clivagens, faixas inesperadas, contradições várias que o tempo, “esse grande escultor”, como lhe chamou Yourcenar, se encarrega de misturar e sobrepor.

Se estamos verticalmente ligados ao fluir da vida que somos, transversalmente somos solidários doutros tantos. Cada um dos nossos estratos corresponde então de forma mais ou menos perfeita a sedimentos coevos vividos por outrem, por vezes tão próximos que as camadas se confundem. É nessas ligações que se reforça o sentimento de tribo, que nos identifica com uns e nos separa de outros e que não é necessariamente constante ao longo da vida. Nem pode ser adivinhado a partir da visão imediata, epidérmica, da nossa camada última.

É numa dessas camadas profundas que é preciso procurar o tempo das nossas adolescências e juventudes, no Maria Amália, um liceu repressivo mas para nós cheio da frescura de quem despertava para a vida nos anos sessenta do século XX. Trazíamos connosco a vontade de mudar o mundo e tudo estava a começar a mudar à nossa volta, desde a roupa que vestíamos e se comprava nos Porfírios à música ye-ye ou às baladas francesas. Eram os “verdes anos”, um tempo que nos funda nos valores e nos sonhos com que construímos o futuro.

Os outros estratos visíveis a olho nu na minha constituição telúrica fazem parte do currículo conhecido: formação católica, estudante de arquitectura em belas-artes nos anos setenta, militante do PPD a seguir ao 25 de Abril, autarca em Cascais na década de oitenta, apoiante de Soares para Belém, feminista e paritária sem complexos, deputada socialista tida por rebelde, vereadora independente em Lisboa já no século XXI. Mas também mãe e avó, amante da natação e do ciclismo, da boa mesa e do incomparável prazer de ler.

Mais profundos são os laços que me ligam aos meus maiores: o meu pai, com a sua integridade, o seu escrupuloso sentido do dever e a sua proverbial paciência, que infelizmente não herdei; a minha mãe, com a sua generosidade social, “expropriada em vida por utilidade pública”, como recordou o prior no dia do seu enterro; a minha avó materna, com a sua tolerância e o seu sentido de humor. E os meus muitos irmãos, ora próximos ora muito distantes de mim, mas sempre em guarda se algum de nós tocar a rebate. Com as filhas e os netos teceram-se outras cumplicidades – elas, as filhas, tão seguras dos seus caminhos que me vão deixando a sensação difusa de ser afinal eu a que menos cresci; e eles, os netos, a ocuparem de rompante os intervalos da ternura.

Devo aos professores e mestres que tive lições que não esqueço: o prazer da língua, a arte do olhar, o direito à cidade, a recusa da hipocrisia. Dos amigos recebi a dádiva emocional que sempre me segurou, a presença insubstituível nos momentos certos, a partilha das horas festivas, dos momentos trágicos e dos dias sem história. Do amor, privilégio absoluto, retenho a revelação do estado de graça.

Com tudo isto se vai fazendo uma pessoa. Outros dias virão trazer-me novas componentes, talvez dissonantes. Então o meu retrato será diverso, mais profundo e maior, porque “o envelhecimento é o aumento do ser”, como me disse um dia Isabel Barreno. Ficará no entanto sempre a marca dos laços que a uns e outros me foram atando. Melhor do que qualquer enunciado, é essa rede que traz inscrita a minha verdadeira identidade.