Helena Roseta
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Entrevista de Helena Roseta à revista Dinheiro & Direitos
A lei chegou a casa
Texto e entrevista Ricardo Nabais & Filipa Rendo
30-01-2020
Foto de Enric Vives-Rubio
Foto de Enric Vives-Rubio

Os princípios são claros: “Todos têm direito à habitação, para si e para a sua família, independentemente da ascendência ou origem étnica, sexo, língua, território de origem, nacionalidade, religião, crença, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, género, orientação sexual, idade, deficiência ou condição de saúde.” Dito de uma penada, a habitação é um direito consagrado na lei. A Lei de Bases da Habitação, inédita em Portugal, prevê, entre outros aspetos, uma regulação do mercado e propõe mecanismos para evitar as diversas distorções a que está sujeito. É a semente da legislação que irá ser aprovada no futuro. O preço das rendas, insuflado nos últimos anos nas grandes cidades, e a dificuldade de acesso ao crédito à habitação são dois aspetos dessas distorções.

Algumas medidas já estão consagradas na legislação em vigor, mas o documento apresenta diversas novidades. Entre estas últimas, está a definição de um Programa Nacional de Habitação, um documento plurianual com um horizonte até seis anos e que integra, entre outros, o diagnóstico das carências habitacionais e a informação sobre o mercado (falhas e disfunções, por exemplo). É proposto pelo Governo, após consulta pública e parecer
de um Conselho Nacional de Habitação, e aprovado pela Assembleia de República.

Para o pôr em prática, os governos deverão adotar medidas de promoção e gestão da habitação pública,como programas de habitação, de repovoamento de territórios em declínio ou cedência de terrenos ou imóveis para habitação cooperativa. E ainda medidas tributárias e política fiscal, para privilegiar a reabilitação urbana e a dinamização do mercado do arrendamento e a penalização de habitações devolutas; medidas de apoio financeiro e subsidiação aos mais desfavorecidos e medidas legislativas e de regulação (por exemplo, à aquisição
de casa própria).

O documento reflete, também, uma atenção especial aos mais vulneráveis, com medidas de proteção e acompanhamento no despejo (que não pode realizar-se em período noturno). Ou a obrigação de o Estado organizar e promover a Estratégia Nacional de Apoio às Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, em articulação com as regiões autónomas, as autarquias locais e a sociedade civil. A possibilidade da dação em cumprimento (entrega da casa ao banco, por impossibilidade de pagamento, com extinção da dívida), desde que esteja contemplada no
contrato de concessão do crédito à habitação, é outra das novidades.

A regulação do mercado de arrendamento, crédito à habitação e a legislação sobre o condomínio são outros pontos deste trajeto, que ainda agora começou.


“O Estado e o mercado falham na oferta de habitação acessível”


A habitação é uma bandeira que atravessa praticamente toda a sua carreira política. As cheias de 1967 contribuíram para uma aguda consciência desse direito. Arquiteta de formação, Helena Roseta, 71 anos, foi autarca em Lisboa e em Cascais, constituinte, deputada e presidente da Ordem dos Arquitetos. Foi autora do primeiro projeto de Lei de Bases da Habitação em 2018, aprovado este ano (2019) e em vigor desde 1 de outubro.

Há uma assimetria entre os mercados de arrendamento e de compra. Como poderá conseguir-se um equilíbrio?
O mercado de arrendamento nas nossas grandes cidades está em vias de extinção. E as condições de acesso ao crédito são difíceis, para a compra. Há, ao mesmo tempo, uma falha do mercado e uma falha do Estado na oferta de habitação acessível. Um ponto com que toda a gente concordou quando apresentámos a lei de bases, apesar das diferenças ideológicas, é que o Estado tem de fazer mais.

E como pode o Estado intervir?
Há quatro instrumentos: a promoção direta (o Estado compra, reabilita ou constrói casas disponíveis); a fiscalidade, embora a política fiscal, muitas vezes, não se cruze com os interesses da política de habitação; a subsidiação, por exemplo, a renda apoiada nas casas públicas, que são 120 mil em Portugal, em que as pessoas pagam de acordo com os seus rendimentos e não de acordo com o valor real da renda. Essa diferença, na prática, é um subsídio, mas escondido: não é dinheiro dado, é desconto feito. Só em Lisboa, esta situação representa, em casas municipais, cerca de 21 mil com rendas apoiadas, de um total de 24 mil, o que significa um investimento de 70 a 80 milhões de euros por ano. É relevante, comparando com o outro subsídio que existe em Portugal – Porta 65 Jovem –, herdeiro de programas semelhantes, que tinha, no orçamento deste ano, 18 milhões de euros, para todo o País. Finalmente, a quarta maneira é a regulação do mercado.

E que mais se pode fazer para equilibrar este mercado?
O mais urgente é a regulação, que pode fazer-se de várias maneiras. Acima de tudo, é necessária informação pública sobre o que se passa no mercado da habitação, quer na venda, quer no arrendamento. O INE começou a publicá-la trimestralmente, com valores públicos medianos por concelho. Mas não temos o cruzamento destes dados com os rendimentos das famílias para ver se são compatíveis com os valores de mercado. E isso é fundamental do ponto de vista do consumidor. Sabemos apenas que em todos os locais do País onde há pressão urbanística, como os centros urbanos, os locais onde há universidades, ou migrantes, não temos soluções habitacionais acessíveis.

Fala-se de uma taxa de esforço de 50% dos rendimentos das famílias só para habitação...
Este valor tem de ser descodificado, porque é um valor médio aplicado aos valores medianos atuais. Só tem essa taxa de esforço quem está à procura de casa agora. Quem já tem, ou a obteve mais barata, ou já a tinha, ou já a pagou. Ou, ainda, tem a renda antiga, anterior a essa taxa de esforço.

Os media davam notícia de uma taxa de esforço que começa a ser insuportável até para a classe média.
Essa pressão existe, e temos informação que o INE fornece esses dados ao Eurostat a partir dos inquéritos que faz a famílias: se compararmos os 20% que ganham menos com os 20% que ganham mais, as taxas de esforço para compra, das pessoas com rendimento mais baixo, são muito elevadas. Mas são muito poucos os que lá chegam, porque as famílias mais pobres nem sequer têm acesso ao crédito.

E no caso do arrendamento?
Verificamos que a taxa de esforço ultrapassa muitas vezes os 40%, que é o limite a partir do qual se considera ser sobrecarga, em termos europeus. E essa margem é ultrapassada por 35% das famílias com casas arrendadas. Isso não quer dizer que estivessem a pagar os 40% – até poderiam estar a pagar muito mais –, mas ultrapassava esse patamar. O objetivo do Governo era baixar essa percentagem de famílias que estão em sobrecarga de 35 para 27 por cento. As taxas de esforço recomendadas a nível internacional andam à volta dos 30 por cento. Mas variam com o perfil das famílias: uma taxa de 30% para agregados com poucos rendimentos não é o mesmo que para famílias com rendimentos médios. Para salários mínimos, a taxa de esforço deveria ser ainda mais baixa. O rendimento disponível pode não ser suficiente para as pessoas terem uma vida digna.

Como está agora o mercado?
O que está a acontecer em Lisboa, nas zonas centrais, é uma atenuação e até, eventualmente, uma baixa de preços. Neste momento, o ritmo de crescimento é maior à volta da cidade. É um mecanismo em espiral e é bastante perverso: as pessoas têm de sair para encontrar casas mais baratas, mas, pelo facto de estarem a sair, as casas ficam mais caras. O fenómeno já é visível em Odivelas ou na Margem Sul, em Alcochete e, quando chegar o novo aeroporto, no Montijo, por exemplo. No Porto, verifica-se o mesmo: as rendas estão a subir em Matosinhos e em Gaia. Daí que o mais importante, volto a sublinhar, é haver informação pública, transparente, acessível e regular o mercado com leis equilibradas e fiscalidade justa.

Falamos de um país de proprietários. Mas não serão, na sua maioria, proprietários de hipotecas?
Costumo dizer que são inquilinos da banca. Têm de pagar a prestação todos os meses, ou ficam sem casa. Com a agravante de terem de pagar condomínio, a manutenção, o IMI... Ou seja, têm as responsabilidades de um proprietário, mas não podem dar o destino que quiserem às suas casas. Aliás, tivemos uma discussão com a banca na Assembleia da República sobre esta matéria. Os bancos entendiam que, se uma pessoa tem um empréstimo para compra e depois quiser arrendar a casa que está a comprar, precisa de autorização. Essa legislação foi alterada: o mutuante só tem de comunicar ao banco que arrenda a casa, e a renda que vai receber tem de ser depositada no banco onde contraiu o empréstimo. É a garantia de que o empréstimo é pago. Não depende da autorização nem de outras circunstâncias particulares. A DECO teve um papel importante neste aspeto, durante as negociações com a banca.

E ainda abordaram a dação em cumprimento.
Queríamos ir mais longe, e a DECO também. A norma europeia sobre o crédito à habitação defende, relativamente, o consumidor, mas não vai tão longe: admite a dação em cumprimento se esta estiver contratualizada. A solução só pode ser encontrada num regime legal extraordinário, que já esteve, de resto, em vigor em Portugal, durante o período da troika, quando as pessoas começaram a ficar aflitas e não conseguiam pagar as prestações. Mas esse regime deve voltar a ser instituído. Se o mutuante estiver numa situação económica difícil, não deve perder simultaneamente a casa, o seu modo de vida e as prestações que já pagou. E ainda ficar um empréstimo para pagar... A lei de bases permite que esta situação agora seja de novo regulada por lei própria.

Também se dedicaram à questão do direito de preferência.
Alterámos o Código Civil nessa matéria crítica. Mas temos muitas casas que ainda não estão em propriedade horizontal e que estão arrendadas. Há legislação que permite ao inquilino exercer o direito de preferência sobre a parte que efetivamente ocupa. Mas, se a fração não estiver em propriedade horizontal, e ele optar por comprar, torna-se comproprietário de “avos” do prédio. A solução é um pouco “coxa”. Temos de agilizar os mecanismos para obter a propriedade horizontal.

Como podemos conciliar uma política pública de habitação com os constrangimentos orçamentais a que estamos sujeitos?
Uma boa solução são os imóveis devolutos públicos. Temos um problema enorme: exige-se reabilitações muito caras que têm de obedecer a um sem-número de exigências. O processo devia ser mais simples, até porque as pessoas estão disponíveis. Quantas vezes, na Câmara de Lisboa, me vieram dizer para ceder uma casa camarária, mesmo em mau estado? As pessoas estavam na disposição de a reabilitar, sobretudo os jovens. Podemos fazer parcerias com os privados, mas a legislação não as prevê à escala local. E há projetos de melhoria que podem custar pouco, como o programa BIP-ZIP, em Lisboa. São programas a que costumo chamar acupuntura urbana, mais pontuais, a uma escala menor, mas que, com o envolvimento das populações, ajudam a fazer a diferença.

E há o problema das habitações privadas devolutas.
Cheguei a propor um mecanismo de requisição civil, com indemnização. A proposta foi muito atacada. Mas ainda a mantive, a título pessoal, para as heranças indivisas. Isso permitiria ir pagando à herança, enquanto os herdeiros se entendiam, e a casa teria uso. A ideia não passou, mas, pelo menos, consciencializou as pessoas. Precisávamos de saber por que razão as casas estão devolutas, se por estarem em ruínas, se pelo facto de o proprietário não ter dinheiro para fazer obras, se por dificuldade em fazerem propriedade horizontal, ou por se tratar de uma herança indivisa…

Outro dos pontos da lei são os mecanismos de proteção a pessoas privadas de habitação.
O Estado e os municípios têm de criar um sistema para que as pessoas ameaçadas por ordens de despejo, e em risco de ficarem sem casa a curto prazo, possam ser encaminhadas para soluções habitacionais. Pode não ser necessariamente uma casa para lhes dar, mas um subsídio de arrendamento para cobrir o tempo de espera. Ou ainda o alojamento temporário numa casa à espera de obras que pode servir para estas situações de transição. Há muitas soluções, com um pouco de criatividade.

A lei também fala de política nacional de habitação. Mas, neste caso, mais uma vez, podemos chocar com a política de restrição orçamental?
Não, até porque não estamos só a falar de investimento público. A política nacional de habitação é a definição dos objetivos, recursos, calendários e medidas. Se houver metas definidas em lei – que têm de ser realistas –, pode escrutinar-se se a política está ou não a ser cumprida. Se isso não for obrigatório, o que acontece é que pura e simplesmente pode não haver política nenhuma.

A proteção aos sem-abrigo também está presente na lei.
Era fundamental contemplá-la na lei de bases. Neste momento, estas situações são geridas pela Segurança Social e não pela Habitação. Costumo dar um exemplo: a Segurança Social é para fazer face às contingências da vida. E que contingências podemos ter? Se ficarmos desempregados, temos acesso a um subsídio; se estivermos doentes, temos o subsídio de doença; o mesmo se passa com a maternidade, com a reforma, com um funeral... E se ficarmos sem casa? Não temos direito a nada.

Porque é que a primeira lei de bases só aparece em 2019, 45 anos depois do surgimento da democracia?
Porque sou teimosa e resolvi apresentá-la(risos)...Houve uma petição, creio, em 2007, para que se pudesse fazer uma lei de bases. Toda a gente aplaudiu, mas não aconteceu nada. Na legislatura anterior, convidaram-me para ser deputada. Aceitei, impondo a condição de fazer uma lei de bases. E fiz o projeto inicial praticamente sozinha. A lei que se aprovou pode não ser perfeita, mas, pelo menos, temos uma visão estruturada e transversal, e um roteiro.

A ONU acabou por elogiar este projeto, pela ênfase que é dada à habitação como um direito.
Tivemos a visita da relatora especial da habitação da ONU, Leilani Farha. No seu relatório, fez uma recomendação a Portugal no sentido de se fazer uma lei de bases. Quando a viu feita, comentou logo, a dizer que a habitação deveria ser vista como um direito. Mas é um direito e é um mercado. E para que o mercado não mate o direito, tem de haver regulação.