Helena Roseta
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Helena Roseta sobre Simone Veil:
"Uma cumplicidade à distância"
03-05-2023
Simone Veil e Helena Roseta, na AR, em 1982
Simone Veil e Helena Roseta, na AR, em 1982

Simone Veil, mulher extraordinária que marcou a História da França, da Europa e das mulheres, veio a Portugal como Presidente do Parlamento Europeu em 1981, a convite de Helena Roseta, então Presidente da Comissão Parlamentar de Integração Europeia. "Foi o começo de uma cumplicidade à distância", confessou Roseta na estreia do filme "Simone: Le voyage du siècle", que relata a impressionante vida daquela que é uma das raras mulheres no Panthéon National de França, onde entrou no ano da sua morte, em 2017, com o maior entusiasmo e apoio popular de todos os quadrantes.
Veja em baixo a apresentação do filme por Helena Roseta

"Um belíssimo trabalho de memória"

O filme Le Voyage du Siècle é a história de uma mulher extraordinária que marcou a História da França, da Europa e das mulheres. O filme segue de muito perto a sua autobiografia, “Ma Vie”, escrita aos 80 anos, um belíssimo trabalho de memória que o filme nos restitui de modo muito envolvente.

Simone Jacob nasce em Nice, em 1927, a mais nova de quatro irmãos, filhos de pais judeus e laicos. Teve uma infância feliz, desportiva e mimada sobretudo pela mãe. Em 1941, com dezasseis anos, é detida, bem como a mãe e Milou, a irmã mais velha. Juntam-se-lhes o pai e o irmão, também detidos, e são todos deportados para o campo de trânsito Drancy, de onde elas seguem para Auschwitz-Birkenau. O pai e o irmão são levados para a Lituânia, onde acabam assassinados.

As três mulheres apoiam-se entre si no meio do inferno. Simone destaca-se pela bravura e pela resiliência, a mãe pelo olhar humano que consegue manter à sua volta, quando a fome e a luta pela sobrevivência atiçam as hostilidades entre detidas. São transferidas para Bobrek, um campo próximo de Birkenau e menos “duro”, mas que não deixa de esgotar os presos com trabalhos pesados e inúteis. É aí que Simone aprende a trabalhar como pedreiro. As três conseguem ficar juntas, mas a mãe definha, doente.

Em 1945, com o avanço das tropas soviéticas, os comandos alemães começam a evacuar os deportados, a pé, numa terrível marcha da morte. Segue-se uma evacuação por comboio, dias e dias, de campo em campo, sem comida nem água, até ao campo de Bergen-Belsen, onde a mãe acaba por sucumbir. Simone e a irmã são finalmente libertas pelas tropas aliadas, mas não ficam livres – são confinadas e separadas por causa do contágio do tifo. É por essa altura que Simone sabe, através de uma detida, que a irmã Denise, que entrara para a Resistência e que ela julgava livre, fora também detida e enviada para Ravensbrück.

O regresso à vida é penoso, não se perdoa aos deportados terem sobrevivido. Mas Simone é uma mulher forte. Volta aos estudos, conhece Antoine Veil, o futuro “Senhor Simone Veil”, seu pilar até ao fim da vida. Os filhos nascem, mas ela luta para concluir os estudos de direito e para trabalhar. Magistrada, é destacada para inspecionar as prisões. É uma das facetas menos conhecidas e mais impressivas da sua biografia: uma mulher jovem, bonita, mãe de filhos, que abre caminho num mundo machista e hostil. Com tenacidade, coragem e um profundo sentido de justiça, consegue fazer valer acima de tudo o respeito pela dignidade dos detidos.

Chamada ao governo pelo Presidente Giscard d’Estaing, é como ministra da saúde que vai lançar, em 1974, o combate que a tornou famosa e popular – a luta pela despenalização da IVG. Atacada das formas mais ignóbeis, resiste, negoceia, mobiliza e acaba por ganhar, numa vitória histórica que mudou para sempre a condição da mulher em França. A sinceridade e a enorme coragem impõem-na ao respeito dos eleitores.

Em 1979, ganha em França as eleições europeias e é eleita Presidente do Parlamento Europeu. Defensora acérrima da causa europeia, única que pode garantir a paz no velho continente, desdobra-se em iniciativas e viagens pelo mundo e torna-se verdadeiramente a “Senhora Europa”, solidária das mulheres, batalhadora pelo fim das guerras e incansável na defesa dos direitos humanos em qualquer parte do mundo.

Foi esta a mulher que tive o privilégio de conhecer, quando fui presidente em Portugal da Comissão Parlamentar de Integração Europeia, entre 1980 e 1982. Foi o começo de uma cumplicidade à distância. Um dia, perguntando-lhe por que havia tão poucas mulheres na política, respondeu-me: É o clube privado deles, um prazer que lhes estragamos com a nossa entrada.

Durante anos a fio, Simone foi figura cimeira nas sondagens de popularidade política em França. Mas em 1986 uma sondagem do Paris-Match perguntou aos franceses quem, de entre Jacques Chirac, Raymond Barre e Simone Veil, preferiam ter como Presidente. Simone ficou em último lugar, com apenas 10%. Foi um balde de água fria. Escrevi-lhe então uma carta, lembrando o sucedido com Lurdes Pintasilgo, também popular antes das eleições e que tinha acabado de perder as presidenciais portuguesas com 7%. A luta das mulheres não terminou e a das pioneiras é sempre mais difícil. Simone retribuiu-me com uma magnífica carta de apoio a Sérgio Sousa Pinto, em 1997, quando o então líder da Juventude Socialista apresentou um projeto de lei sobre a despenalização da IVG, que acabou derrotado por apenas um voto.

Talvez os franceses ainda não estivessem prontos para ver entrar no Eliseu uma mulher, ainda por cima judia. Mas a morte vingou-a deste revés: no próprio dia em que morreu, poucos dias antes de completar 90 anos, já circulavam petições e abaixo-assinados a exigir para ela o Panthéon National, onde apenas se encontravam 4 mulheres. Simone foi a quinta e entrou pela porta grande, no meio do maior entusiasmo e apoio popular de todos os quadrantes.

Não resisto a terminar com palavras suas que são todo um programa: “Nas diferentes funções que ocupei, no governo, no Parlamento Europeu, no Conselho Constitucional, esforcei-me por não andar ao sabor do vento, colocando os meus atos ao serviço de princípios aos quais permaneço ligada com todas as minhas fibras: o sentido da justiça, o respeito do homem, a vigilância face à evolução da sociedade. Hoje, de certo modo, não fechei a loja das minhas ideias. E se trabalho menos do que antes, persisto na defesa das causas que me parecem justas no contexto das realidades contemporâneas. Assim, esforço-me para que o meu olhar continue objetivo e limpo de tabus. E não tão negro como o dos declinólogos de que estamos rodeados.” (1)


Por tudo isto, resta-me apenas uma palavra, que será certamente a de todos vós: Merci, Simone.

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(1) Em "Ma Vie", autobiografia de Simone Veil, 2007