Helena Roseta
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Declaração política de Helena Roseta
Por que não há-de o Estado ficar com o imobiliário do Novo Banco?
13-03-2019


"Já que directa ou indirectamente somos todos chamados a pagar para manter a confiança dos depositantes e a estabilidade do sistema financeiro, já que a nacionalização do Novo Banco foi descartada, por que não há-de o imobiliário não estratégico do Novo Banco ficar na posse do Estado?" questionou Helena Roseta, em declaração política na AR.

"Trago este caso aqui, justificou a deputada, pela incompreensão e justa revolta que ele está a gerar. Incompreensão e revolta que são tanto maiores quão desigual é o tratamento dado ao cidadão comum que pede um empréstimo para compra de casa."

Texto integral
Há um sentimento generalizado de revolta perante a desigualdade do tratamento que em Portugal é dado aos incumpridores. O castigo é máximo para os pequenos e suave ou inexistente para os grandes.

Veja-se o caso do Novo Banco. Herdou do BES enormes imparidades no seu balanço. Imparidades é um eufemismo para “buracos”, que é assim que o povo lhes chama.

Grande parte destas imparidades é da responsabilidade do próprio BES e de quem o dirigiu. O BES era um dos grandes proprietários imobiliários de Portugal, dispunha de terrenos e imóveis com excelentes localizações mas teve, como se costuma dizer, “mais olhos que barriga”. Sobreavaliou o que tinha. Conheço bem o fenómeno dessa alavancagem. Sei que é através dos arquitectos e dos autarcas que se fabrica aquilo a que há muito tempo chamei “nova moeda” - metros quadrados de construção. Trata-se de multiplicar, através de sucessivas decisões urbanísticas, o valor de um imóvel. Nem é preciso executar obra – basta obter a aprovação dos projectos com as alterações de uso e de espaço edificável que se pretendem. A desalavancagem está agora em curso.

Na limpeza do balanço que o NB tem vindo a fazer, estão ser vendidos “activos imobiliários não estratégicos”, ao desbarato e com grandes perdas, ao primeiro que se apresente – no geral um “hedge fund”, outro eufemismo para fundo abutre.

Em dezembro passado, consumou-se o contrato promessa do projecto Viriato do NB. A carteira imobiliária, com um valor contabilístico de 717 milhões de euros, era composta por 8.726 propriedades com usos residencial, industrial, comercial e terrenos. Foi vendida à Anchorage Capital Group que pagou apenas 389 milhões de euros. Uma pechincha. De caminho, a imparidade correspondente foi limpa do balanço e a perda soma-se às outras que os resultados do NB reflectem. Certo é que o “buraco” será mais uma vez coberto pelo Fundo de Resolução, com a ajuda de um empréstimo milionário do Estado.

Podia ser de outra maneira? Podia, mas o escolhido foi este complexo “mecanismo de capitalização contingente”, também conhecido por “Maria Albertina”, que mais não é que uma tentativa póstuma de controle de danos através da restante banca e do Estado.

Admito que a simples nacionalização do NB, defendida por algumas bancadas nesta casa, pudesse ter custos mais elevados. Mas já lá vão alguns milhares de milhões de euros e o processo ainda não terminou. Não conheço sequer a dimensão exacta das imparidades do NB, em particular as que resultam de activos imobiliários, mas pelo que temos visto será colossal.

A questão que trago aqui é muito simples. Já que directa ou indirectamente somos todos chamados a pagar para manter a confiança dos depositantes e a estabilidade do sistema financeiro, já que a nacionalização do NB foi descartada, por que não há-de o imobiliário não estratégico do NB ficar na posse do Estado? Por que se aceita passivamente que ele seja vendido ao desbarato – ainda por cima quando o mercado está sobreaquecido – quando afinal precisamos, como de pão para a boca, de imobiliário público para habitação?

Senhoras e senhores deputados
Está em discussão a futura lei de bases da habitação. Sabemos que em Portugal, ao contrário do que acontece em grande parte da Europa, apenas 2% dos recursos habitacionais do país são públicos, sendo os restantes 98% privados. Deixem-me fazer uma precisão – os 2% públicos dividem-se em 0,2% do Estado e 1,8% dos municípios. É impossível garantir o direito constitucional à habitação, que compete ao Estado, a partir duma tão ridícula capacidade.

Que fazer, então? Desde logo, o Estado tem de chegar-se à frente sempre que grandes carteiras de imobiliário são transaccionadas a preços de saldo. O projecto Viriato não é filho único. Há bem pouco tempo a Fidelidade vendeu perto de 2.500 imóveis por 425 milhões de euros, dos quais também só recebeu uma parte. Foi outra oportunidade perdida.

Mas o caso do NB tem a agravante de exigir ao Estado que ajude a suportar as perdas para o banco se tornar apetecível para a revenda, essa sim certamente lucrativa, por quem nada pagou pela sua aquisição. Há mais imóveis na calha para suceder ao projecto Viriato. Está mais que na altura de o Estado abrir o radar. Não sei exactamente qual será a melhor solução técnica, se um direito de preferência, se uma exigência maior de controle, se outra qualquer. O que sei é que o caminho actual é desproporcionado e injusto e, no final de contas, ficamos sem nada. Nem banco nem imobiliário.

Dir-me-ão que o Estado nem sempre é bom gestor imobiliário. É verdade. Mas chamem as cooperativas, chamem as novas modalidades de habitação colaborativa, chamem a capacidade de inovação da geração jovem, tão qualificada e tão maltratada no seu direito à habitação. Há tanto caminho a fazer!

Senhoras e senhores deputados
Trago este caso aqui pela incompreensão e justa revolta que ele está a gerar. Incompreensão e revolta que são tanto maiores quão desigual é o tratamento dado ao cidadão comum que pede um empréstimo para compra de casa. Também nesta matéria muitos bancos, e não apenas o NB, sobreavaliaram os activos sobre os quais se constituíram as hipotecas. E sobreavaliaram com alguma leviandade a capacidade de cumprimento de famílias com os baixos rendimentos médios que são os nossos. Quando a crise sobreveio e muitas famílias deixaram de poder pagar, grande parte da banca foi inexorável. As pessoas perderam as casas, perderam o dinheiro e muitas vezes ainda ficaram com dívidas, porque o valor real do bem é afinal muito inferior ao valor do empréstimo. O processo é injusto e desproporcionado e tem consequências sociais gravíssimas.

É por isso que estão a fazer caminho por essa Europa fora medidas como a extinção da dívida hipotecária com a entrega do bem, quando está em causa a morada de família. Medidas que o BE e o PCP propõem nos seus projectos de lei de bases da habitação e que não devem ser descartadas. Sugiro mesmo que se vá mais longe. A impenhorabilidade da casa de morada de família, já hoje reconhecida legalmente em caso de dívida fiscal ou contributiva, deve ser alargada à dívida hipotecária contraída para aquisição de habitação própria, se houver carência económica superveniente e justificada. E deve haver formas de, sem novas alcavalas, restruturar a dívida hipotecária à luz das condições reais da família, ou a possibilidade de trocar a casa por outra mais barata. É o direito à habitação que está em causa.

Defendo igualmente maior prudência no crédito à habitação. Os juros poderão subir de um momento para o outro. Tanto as famílias como a banca devem ter a noção exacta dos riscos que isso comporta.

A crise habitacional está a agravar-se no nosso país. São precisas medidas preventivas e uma muito maior proactividade das políticas públicas. Mas é sobretudo preciso que os cidadãos sintam que o sistema financeiro tem de deixar de ser uma espécie de rede de pescadores ao contrário, que prende o pequeno e deixa passar o grande. O tratamento dado à pequena dívida familiar não pode ser tão violento face à complacência a que assistimos perante sucessivos “buracos financeiros” que não podem ser indefinidamente escondidos ou adiados.

Não haverá maior confiança no sistema bancário sem este reequilíbrio entre pequenos e grandes. Mas é também a confiança na democracia que está em causa. Precisamos todos de ser muito mais exigentes com a seriedade e a decência de quem toma decisões sobre as nossas vidas.