Helena Roseta
facebook
Habitação e covid 19 - Carta aberta da Rede (H)abitação
23-03-2020 Público on-line - habitação

"Não é possível defender o pleno direito à saúde sem garantir o direito à habitação" afirmam os cerca de 60 membros da recém-criada Rede H, uma "rede nacional de estudos sobre habitação" formada por académicos e activistas do direito à habitação. O jornal Público divulga hoje uma Carta Aberta da Rede H que propõe 10 medidas extraordinárias e urgentes para fazer face aos impactos da Covid 19 na habitação.

O que é a Rede H


Fundada em fevereiro de 2020, a Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação reúne cerca de 60 pessoas, entre académicos/as, ativistas e outros atores da sociedade civil, unidas pelo interesse no estudo do tema da habitação. Com a carta aberta ao governo marcamos o início de um percurso de reflexão e participação ativa no debate sobre habitação em Portugal durante e depois da pandemia covid-19. Está ainda em curso a preparação de um documento mais detalhado, em que iremos aprofundar ideias e propostas, considerando um prazo temporal mais alargado

Carta aberta da Rede H


As condições habitacionais são, em simultâneo, causa e consequência das desigualdades sociais. Em períodos de crise, os efeitos destas desigualdades agudizam-se. Sabemos que Portugal é um dos países europeus com maiores dificuldades no acesso a uma habitação condigna e onde, portanto, o impacto da COVID-19 será mais profundo.

Em situações de confinamento em casa, as condições habitacionais tornam-se ainda mais importantes porque delas depende a qualidade de vida dos indivíduos e das famílias: quem viver em alojamentos sobrelotados, enfrentará dificuldades acrescidas; quem estiver em situação de sem-abrigo ou viver num alojamento precário sem água e sem eletricidade, não poderá proteger-se do vírus. Com o abrandar da economia, mais famílias não conseguirão pagar as suas rendas ou prestações com a habitação e outros serviços fundamentais, como água, eletricidade e gás. O acesso à internet e, por conseguinte, à informação, serão também fortemente condicionados.

Com esta carta aberta endereçada ao Governo, ao Parlamento e às demais entidades públicas, a Rede H – Rede Nacional de Estudos sobre Habitação, os seus integrantes e outras pessoas interessadas no tema da habitação exigem medidas extraordinárias que consideram necessárias à garantia da segurança e saúde das pessoas em situação de sem-abrigo ou de precariedade habitacional.

Entendemos que as medidas aprovadas até agora pelo Parlamento (como a suspensão dos despejos, dos efeitos das denúncias de contratos de arrendamento e da execução de hipotecas) e por algumas Câmaras Municipais (como a suspensão das desocupações do parque habitacional municipal) são positivas, mas ainda insuficientes face à # s necessidades de hoje.

Sob um elevado risco de incumprimento da Lei de Bases da Habitação e do Plano Nacional de Contingência COVID-19, bem como das várias circulares informativas provenientes da Direção-Geral da Saúde e do Ministério da Saúde, solicitamos o cumprimento imediato de um conjunto de medidas dirigidas à habitação, designadamente:

  • 1. Mobilizar os espaços disponíveis (indústria hoteleira, alojamento local, habitações que possam ser temporariamente cedidas) para suprir o cumprimento de autoisolamento e de quarentena com vista a evitar riscos para a saúde individual e familiar. Esta utilização imediata, se necessário através de requisição como prevista na declaração de Estado de Emergência, deve beneficiar primariamente pessoas em situação de sem-abrigo, famílias a viver em condições de precariedade extrema, vítimas de violência doméstica ou de género, bem como famílias em situação de sobrelotação, trabalhadores rurais em situação de habitação precária e, se necessário, profissionais da saúde.

  • 2. Prorrogar automaticamente os contratos de arrendamento (habitacionais ou não) durante o período de emergência nacional, acrescido de período adequado para procura de nova habitação permanente e condigna findo este período.

  • 3. Prevenir o aumento dos encargos com a habitação, através da redução ou suspensão dos pagamentos das rendas e das prestações relativas a crédito das famílias que sofram diminuição dos rendimentos.

  • 4. Proteger os pequenos proprietários cujas rendas constituem parte substancial da sua subsistência, com medidas de alívio fiscal e de apoio financeiro.

  • 5. Garantir medidas de proteção face ao risco de contágio com COVID-19 aos trabalhadores da construção civil e prestadores de serviços domésticos e domiciliários.

  • 6. Garantir recursos e apoio para evitar os problemas de saúde mental decorrentes do isolamento, dando especial atenção aos grupos vulneráveis, como os portadores de deficiência, idosos e crianças.

  • 7. Reforçar os instrumentos de proteção a situações de violência doméstica e de género.

  • 8. Garantir a criação de instrumentos de proteção pessoal, informações e acesso a testes à COVID-19 a todo o pessoal empregado ou voluntário no trabalho com sem-abrigo.

  • 9. Assegurar o fornecimento de equipamento informático e acesso à internet às famílias que não podem aceder a serviços como a aquisição de bens essenciais online, ensino à distância e outras informações.

  • 10. Garantir a permanência em Portugal, num quadro residencial digno e que assegure o acesso a todas as medidas aplicáveis aqui mencionadas, aos imigrantes, aos refugiados e aos estrangeiros que aguardam decisão* sobre requerimento de asilo e autorização de residência (ou não a possuem), na medida em que as suas condições de vida podem agravar-se substancialmente e as possibilidades de retorno se encontram seriamente condicionadas ou são mesmo inexistentes.


O desafio que enfrentamos exige medidas urgentes e extraordinárias: é inaceitável pensar que os sistemas residenciais e o mercado imobiliário retomem a situação pré-COVID-19, caraterizada por disfuncionalidades significativas, injustiças no acesso a uma habitação condigna e inúmeros apartamentos e prédios abandonados.

A habitação é um Direito Fundamental, consagrado na Constituição da República Portuguesa. A defesa do direito à habitação torna-se ainda mais relevante em momentos como este, onde todas as contradições e efeitos nefastos da mercantilização e financeirização do imobiliário se tornam mais explícitos. Não podemos defender o direito à saúde sem garantir o direito à habitação. Neste momento tão difícil que atravessamos, pedimos que Governo, Parlamento, Municípios e todos os atores da sociedade civil reconheçam que é imperativo permitir que a habitação cumpra a função fundamental de proteção das pessoas e famílias.

Assinam esta carta a título individual:
Aitor Varea Oro, arquiteto
Alda Botelho Azevedo, demógrafa
Ana Estevens, geógrafa
Ana Rita Alves, antropóloga
Ana Silva Fernandes, arquiteta
André Carmo, geógrafo
Caterina Di Giovanni, arquiteta
Cristina Santinho, antropóloga
Eduardo Ascensão, geógrafo
Fílipa Serpa, arquiteta
Francielli Delprá Cardoso, investigadora
Giovanni Allegretti, investigador
Gonçalo Antunes, geógrafo
Helena Amaro, advogada
Helena Roseta, arquiteta
Hugo Pinto, economista
João Ferrão, geógrafo
Jorge Malheiros, geógrafo
José Reis, economista
Katielle Silva, geógrafa
Luís Mendes, geógrafo
Marco Allegra, geógrafo
Maria João Neves, frequência em engenharia do ambiente
Mariana Almeida, arquiteta
Nuno Travasso, arquiteto
Rita Silva, investigadora
Sheila Holz, investigadora
Sílvia Jorge, arquiteta
Sílvia Leiria Viegas, arquiteta
Simone Tulumello, geógrafo
Sónia Alves, geógrafa
Tiago Carvalho, geógrafo