Helena Roseta
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Habitação: Em Lisboa há uma "tempestade perfeita". Isso é bom ou mau?
16-04-2017 Filomena Lança, Jornal de Negócios
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Lisboa vive um período de transformações que está longe de terminar e que terá ainda ondas de choque que ninguém sabe que efeitos terão. O tema será esta semana discutido no ISCTE com especialistas de cidades que já passaram pelo mesmo.

Bairros históricos de cara lavada, prédios reabilitados, comércio activo, uma esplanada em cada esquina. Nas ruas, turistas aos magotes e, porta-sim, porta-sim, um hotel, um hostel, um prédio com alojamento local, leia-se, a arrendamento temporário a quem vem de férias. Esta é uma das leituras possíveis. A outra é um pouco diferente: bairros históricos de cara lavada, sim, mas cada vez com menos habitantes permanentes, onde arrendar casa é tarefa impossível e comprar só está ao alcance de muito poucos, dados os preços exorbitantes. E quanto ao comércio, muitas lojas de recordações ou de marcas internacionais onde antes havia talhos, padarias e mercearias. Duas leituras, mas uma coisa certa: Lisboa está a viver um "processo de profunda transformação, que está ainda numa fase inicial".

Sandra Marques Pereira, investigadora na área da sociologia urbana e professora do ISCTE, tem-se dedicado a estudar o tema e alerta para a importância de uma "monitorização permanente". Porque vêm aí "ondas de choque" e o fenómeno de transformação está para durar: "A procissão ainda vai no adro. Não sei até que ponto isto vai ser duradouro. Não vejo um fim a prazo, mas é uma tempestade perfeita", alerta.

Tem de haver uma monitorização permanente e com fontes muito abrangentes, dada a velocidade a que as mudanças estão a ocorrer.Sandra Marques Pereira
Socióloga e professora do ISCTE

Este fenómeno de substituição – gentrificação, como é apontado – não é exclusivo de Lisboa. Cidades como Berlim, Barcelona, Paris ou Nova Iorque já passaram por ele, e o tema estará em discussão esta segunda-feira, 17 de Abril, numa conferência com especialistas internacionais organizada pelo ISCTE a que chamaram "Lisboa, que futuro?"

Mas tudo isto é bom, ou mau? Que consequências terá e quais as ondas de choque para o resto da cidade? "Não podemos dizer que é mau ou bom. É evidente que há aspectos muito positivos", responde Sandra Marques Pereira. E enumera: "o governo da cidade aposta numa profunda melhoria dos espaços públicos, a cidades está mais cosmopolita, a oferta cultural é grande, temos investimento estrangeiro." Mas, depois, há o outro lado: "Quem queria ir para o centro não pode, as pessoas e o comércio são obrigados a sair – e isso é uma violência –, e faz-se desses territórios zonas artificiais, o que se vira contra o interesse do turismo".

Gentrificação: quando os moradores são substituídos
Tem-se falado muito em gentrificação, fenómeno identificado em Inglaterra nos anos 60 e que foi aparecendo em muitas outras cidades. Em termos gerais, "é a substituição de classes mais baixas por classes médias ou mais altas", explica Sandra Marques Pereira, que nem gosta muito de aplicar o conceito a Lisboa no actual contexto. "O que nós temos aqui em causa é o fenómeno de ressurgimento dos centros antigos da cidade. Um forte investimento depois de um período longo de abandono ou até estagnação", afirma.

Nos anos 80 começou a aposta na casa própria, mas as classes médias altas não escolheram os centros históricos, onde predominava o arrendamento e as casas estavam degradadas. Deslocaram-se para zonas como Telheiras, lembra a socióloga. Só mais tarde, já neste século, começou a haver um interesse pelo centro, que se tornou cada vez mais apetecível para estas pessoas. As mesmas que agora não conseguem aí viver, porque as rendas são altas e os preços proibitivos. E quem os está a substituir são os turistas, num fenómeno também ele de gentrificação.

No ano passado, o Global Destinations Cities Index, elaborado anualmente pela Mastercard, concluía que entre 2009 e 2016 o número de visitantes internacionais que pernoitam em Lisboa cresceu 7,4%, com a cidade a entrar no ‘top’ 5 das cidades com o crescimento mais rápido da Europa, juntamente com Hamburgo, Berlim, Istambul e Copenhaga. O número de alojamentos locais também não para de crescer e os legalizados são hoje 7419, dos quais 809 registados este ano.

Não devemos "diabolizar o AL nem agir por reacção", diz a especialista, mas é preciso "fazer a articulação entre os interesses privados e os outros". E apostar em políticas publicas, reconhece, dando como exemplo as rendas acessíveis no centro prometidas pela Câmara, mas que ainda não se sabe quando chegam. Sem esquecer que "há coisas sobre as quais não temos qualquer controlo, como a dinâmica da globalização e do turismo urbano internacional". E, depois, remata, "somos um país pobre, a quem isto dá jeito".


As mudanças com que Lisboa tem de lidar - 3 pontos chave

Crescimento do turismo


Segundo dados do INE, entre 2014 e 2016 o número de dormidas na região de Lisboa aumentou 14%. A CNN elegeu-a recentemente como "a cidade mais ‘cool’ da europa".

Alterações à lei das rendas


Veio permitir que muitos senhorios se livrassem de contratos antigos de rendas baixas. Essas casas voltaram ao mercado reabilitadas, mas destinadas a turistas ou com rendas muito altas.

Valores do imobiliário


O interesse dos investidores, directamente relacionado com o turismo, fez disparar os valores do imobiliário e há quem já fale numa nova bolha.